» home » Artigos » Narcisismo e o Covid-19

Narcisismo e o Covid-19

A ideia de escrever sobre este tema partiu de uma vivência pessoal que tenho experimentado neste período de confinamento pela pandemia do COVID-19. Como grande parte das pessoas, tenho trabalhado em home office desde o final de março/20. Os atendimentos psicológicos acontecem regularmente, de segunda à sexta-feira, por vídeo chamadas, ou seja, on-line.

Desde o princípio, enfrento dificuldades com um vizinho de meu prédio que insiste em não respeitar um nível aceitável de altura dos sons ao assistir seus programas de tv, ao ouvir suas músicas e ao conversar com as pessoas (pessoal ou virtualmente).

Inúmeras vezes pedi auxílio àqueles de direito (funcionários e síndico do condomínio) para que gentilmente conversassem com o vizinho e solicitassem a diminuição do volume dos sons. Algumas vezes tal pedido foi atendido, outras não. O fato é que esses episódios continuaram se repetindo.

Decidi eu, conversar com ele. E ao pedir a colaboração, visto que neste momento não tenho escolha, senão trabalhar em formato de home office, escutei que deveria ter bom senso e saber que vivemos em um prédio residencial e não comercial. Enfurecida, ruminei essa conversa por dois dias e a ressignifiquei decidindo escrever este texto, visto que este tema reflete algo que encontramos no nosso dia a dia e que tem ficado escancarado neste cenário de pandemia que estamos vivendo: o narcisismo.

O narcisismo é um fenômeno que está presente em todo psiquismo humano, isto é, todos nós somos um pouco narcisistas. Porém, ele percorre um largo espectro que vai da normalidade à patologia, sendo que a manifestação de atitudes narcísicas pode ser estruturante e fundamental para a construção da identidade (carinho por si mesmo, vontade de atenção, de reconhecimento), até alienante e patológico (quando existe um maior impacto em causar sofrimento nos outros).

Neste período de pandemia, possivelmente os narcisistas do espectro próximo ao patológico estão mais incomodados, pois eles precisam enfrentar desafios muitos intensos para o seu modo de ser. Neste grupo, estão aqueles que têm uma falta de empatia, uma dificuldade de se colocar no lugar do outro, de perceber os sentimentos do outro, uma necessidade constante de ter atenção, de serem admirados, enaltecidos, com a certeza de que eles merecem um tratamento especial em relação a todas as outras pessoas.

Em um primeiro momento, muitos deles se apresentam de forma sedutora, carismática e habilidosa, conseguindo a atenção, o reconhecimento e a valorização do outro, o que é extremamente prazeroso para eles. No entanto, depois esse prazer vai se esvaindo, porque o narcisista não tem a conexão pessoal com os sentimentos e com os desejos internos de outras pessoas.

Pois bem. Estamos vivendo em um contexto de confinamento em que é necessário abrir mão de nossa liberdade em prol da coletividade, o que é totalmente contra a personalidade do narcisista. O narcisista é por definição, muito egoísta e portanto, focado nele mesmo. E temos acompanhado isso em nossa rotina atual: aquele indivíduo que não se preocupa em nenhum momento com o impacto da pandemia nas outras pessoas, não se preocupa com quem está adoecendo ou vivenciando o luto, muito menos se sensibiliza com aqueles que estão readaptando a sua vida para se protegerem e proteger o coletivo do coronavírus. Ao contrário, o narcisista se coloca numa condição de privilégio, de direito especial em relação aos outros: é o camarada que se recusa a usar máscara ou o nosso amigo vizinho que entende poder ouvir música na altura que ele desejar.

Para identificarmos se estamos nos relacionando ou tendo contato com narcisistas patológicos, algumas perguntas podem nos ajudar: A pessoa te deixa constantemente com exaustão emocional? Regularmente, ela busca valorização, atenção, elogio e admiração? Ela distorce os fatos e/ou situações dando a impressão de ser mais grandiosa e correta do que as outras pessoas? É obcecada pela sua imagem, aparência física? Você nota que as relações que ela faz com outras pessoas sempre têm um interesse ou objetivo em troca?

Se a resposta foi sim para a maioria das perguntas, fique atento! É muito provável que você esteja diante de alguém com narcisismo intenso e seria muito bom estabelecer limites com esta pessoa, talvez dar um passo para trás e se afastar e quem saber sugerir a ela que busque ajuda psicoterápica.

Acho que deixarei um cartãozinho embaixo da porta do amigo vizinho, com a indicação de um bom psicólogo!

Sobre Patrícia Ignácio Barreto

e-mail CRP 06/73625 Psicóloga formada pela UniFMU. Especialista em Psicologia Clínica pelo Hospital do Servidor Publico Estadual. Especialista em Dependência Química pela UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo. Atendimentos no consultório em psicoterapia a crianças, adolescentes e adultos, avaliação psicológica e orientação a pais.